BLOGUE DA ESCOLA SANTA MÔNICA _ PELOTAS/RS

"Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra.

E te pergunta, sem interesse pela resposta.


Pobre ou terrível, que lhes deves:

'Trouxeste a chave?' "

(Carlos Drummond de Andrade. Procura da poesia)

quarta-feira, 17 de março de 2010

Crônica sobre um pardal, por Rubens Amador (2º ano Médio)

"Passou-se já longo tempo! Teria eu meus quatro ou cinco anos de idade. Meu tio Leôncio estava condenado a morrer de tuberculose.

Naquele tempo era assim. Não havia o pneumotórax, a hidrazida ou os antibióticos. Os bem abonados economicamente procuravam cidades altas, como Campos do Jordão, ou iam para as Minas Gerais. O ar rarefeito desses lugares exigia menos movimentos respiratórios dos pulmões e, este fato, aliado a uma alimentação rica, ensejava, em muitos casos, uma maior chance de cicatrização das cavernas pulmonares.

Os doentes daqui, sem muitos recursos para buscarem uma possibilidade de cura em clínicas distantes e caras, iam para nossa campanha mesmo ou para lugares que a elas se assemelhassem. Procurava-se o ar puro para quem o estava perdendo dia a dia.

Foi o que fez minha avó com seu filho doente, que adorava. Alugou uma chácara, parece-me que na Cascata, e para lá levou seu primogênito. Meu tio era uma criatura boníssima e paciente. Era magro, alto e jovem. Lembro-me muito bem dele com sua barba negra e bem cuidada que, apesar disso, aumentava-lhe o aspeto de doente. Mas ele tinha muito orgulho de sua barba e não a tirava por nada.

Um belo domingo meus pais foram visitá-lo – durante uma tarde – levando-me com eles, que era seu filho caçula.

Eu brincava por entre o pasto do terreno, nos fundos da chácara, onde havia muitas árvores frutíferas.
Em dado momento meu coração pulou forte, de surpresa e alegria! Eu vira um filhotinho de pardal – que ainda não voava – no chão, saltitando, e lembro-me que não foi muito difícil correr atrás dele e pegá-lo.

Oh, tempos dourados que nossa mente tão nova tudo grava, de maneira indelével! Aquele passarinho era a primeira coisa realmente minha. Atingia, por isso, naquele momento, um significado extraordinário para mim. Representava uma posse e uma vitória, que só a tenra idade da inocência podia emprestar àquele acontecimento tão banal.

Corri para casa, a uma dezena de metros de onde eu me encontrava, trazendo desajeitadamente a frágil ave entre minhas pequeninas mãos, meio assustado e desconfortável com as bicadas com que o animalzinho procurava se defender. Mas não o larguei, afinal era meu primeiro troféu.

Tio Leôncio foi a primeira pessoa que encontrei. Estava sentado, tomando sol em uma cadeira nos fundos da casa e provavelmente, reparando por mim enquanto eu descobria aquele ambiente totalmente novo.

Mostrei-lhe o pássaro que “caçara”, com sensação de vitória e fortuna, representadas por aquele pardalzinho cativo em minhas mãos. Meu tio me elogiou pela minha coragem, e disse-me que aquele pássaro (um pardal!) era muito bonito. Agora ele já o segurava, enquanto eu o cercava excitado.

“Rubens”, disse-me. ”Só tem uma coisa: ele é muito pequeno ainda, precisa ser alimentado por sua mãe e seu pai, para crescer. Tem que aprender a voar com eles. Por isto se deixou pegar. Está indefeso.”

Um sentimento de desolação – lembro-me – tomou conta de mim. Perguntei-lhe aflito: 'Vou ter que soltá-lo?'

Meu tio piscou-me um olho e tranquilizou-me: 'Mas eu sei de uma simpatia que, quando este pardalzinho estiver pronto para voar e alimentar-se sozinho, ele vai voltar para ti um dia...'

'Como?' – indaguei ansioso. 'Olha o segredo (respondeu-me com voz entre baixa e misteriosa): vai ter de ficar entre nós para sempre.' E continuou: 'A gente coloca três pedrinhas de sal na cauda dele e aí solta-se o passarinho perto de uma árvore; quando estiver adulto, grande, ele volta e o pegas de novo.'
Concordei logo, ante tanta sapiência. Ansioso o vi levantar-se, e com passos lentos ir até a cozinha, onde apanhou o saleiro. Retirou algumas pedrinhas maiores de sal e colocou-as entre as penas da cauda do pássaro. Eu a tudo observava, segurando o animalzinho – honrado – enquanto ele fazia aquela simpatia secreta que traria meu pardal de volta, um dia.

Pouco tempo depois, meu tio morreu. Fomos todos lá onde ele dormia para sempre. Alguém chorava baixinho. Guardo na lembrança a sua face morta, que, hoje percebo, muito se assemelhava à de Che Guevara também sem vida, na maca.

Adulto, nunca me esqueci daquele agradável incidente ocorrido entre as minhas primeiras experiências positivas no aprendizado que todos fazemos, aos poucos, na Universidade da Vida. Sempre que vejo um pardal adulto saltitando entre as pedras da rua a catar um grão qualquer, pergunto-me se não será aquele que foi meu, em um dia distante, numa posse tão fugaz, e que agora finalmente estaria voltando.

Afinal, dentro da gente, sempre fica a parte melhor da criança que fomos um dia. "

Rubens Amador é cronista literário e jornalístico. Produziu, durante vários anos, muitos trabalhos como colaborador na imprensa pelotense. Concordou em publicar algumas crônicas e contos no blogue Pelotas, Capital Cultural, cujo editor é Francisco Antônio Soto Vidal. A crônica foi transcrita do blogue mencionado (
aqui) e veio acompanhada, a pedido do próprio autor, por comentários do editor Francisco , os quais merecem igualmente serem lidos.

Essa crônica de memórias, de uma singeleza ímpar, despertou em mim sentimentos de ternura e saudade da minha infância, tão bem agraciada pela presença de meus pais e familiares, sempre presentes em minha vida. Gratíssima ao Sr. Rubens por nos brindar com esse presente, e ao – Francisco –, por publicá-la e permitir que eu a transcrevesse aqui. Bj, Tê!

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